Imagem com uma cruz e a Igreja de São Miguel das Missões, ao fundo.

REDUÇÕES JESUÍTICAS: A UTOPIA SUL-AMERICANA

Lembro-me da primeira vez que li um artigo sobre as reduções jesuíticas, foi um impacto. E que impacto! Impressionei-me ao saber que um dia houve na América Latina uma civilização composta por religiosos espanhóis e indígenas que conviveram por quase dois séculos compartilhando do mesmo espaço geográfico, da mesma fé e dos mesmos benefícios gerados por uma igualitária distribuição de renda. Encantei-me novamente ao saber que essa civilização, que fez parte do Paraguai, Argentina e do Brasil, ganhou uma exposição própria em Madrid organizada pela Jornada Mundial da Juventude neste ano de 2011, com o seguinte título: “As Reduções Jesuíticas do Paraguai: uma aventura fascinante que perdura no tempo”. Isto faz-me crer que não faltam exemplos edificantes na história da humanidade a ser resgatados, inclusive do nosso controverso país e/ou de nossos vizinhos sul-americanos.

As reduções jesuíticas foram desenvolvidas, com sucesso, no século XVII por interesse da coroa espanhola que, como colonizadora, queria que os índios guaranis fossem catequizados o mais rápido possível para que os espanhóis pudessem instalar-se no território com mais facilidade. Pois, uma vez que os índios estivessem pacificados, os espanhóis poderiam expandir o seu domínio sem precisar do uso de armas. Mas, o que os jesuítas fizeram foi muito além das expectativas de qualquer governante: implantaram um sistema comunitário o mais justo possível em termos religiosos, culturais e econômicos, buscando conviver em perfeita harmonia com os nativos, sem exploração. Os jesuítas instruíam os indígenas na fé católica, ensinavam-nos a ler, escrever, fazer contas, e a executar com maestria os mais diversos ofícios, tais como agricultura, arquitetura, criação de gado, carpintaria, pintura, relojoaria, artes manuais, costura, comércio, escultura de imagens sacras, produção de instrumentos musicais em pequenas indústrias, etc. Os índios também participavam ativamente da vida cultural da região como em procissões, desfiles e festividades católicas. A influência guarani podia ser notada até nas obras de arte como nos detalhes das feições de anjos esculpidos com traços indígenas ou mesmo em esculturas com inspiração guarani junto às imagens de estilo europeu como nas colunas das (hoje) ruínas de Trinidad no Paraguai.

Em meio a essa singular realidade, tem que se destacar a fantástica organização dessas comunidades, totalmente inovadoras para a época. Os jesuítas eram respeitados pelos índios locais, pois todos viviam nas reduções sem maiores privilégios. As casas, tanto dos guaranis quanto dos espanhóis, eram construídas do mesmo material, ou seja, de pedra ou de tijolo de terra denominado de adobe. As reduções assemelhavam-se a construções agrupadas em grandes retângulos em terreno plano, portanto, ninguém morava bem ou morava mal, como se diz, modernamente.  Todos percorriam quase a mesma distância para se deslocar para os prédios das reduções: a igreja (prédio principal), o colégio, a casa dos padres, a casa dos índios, o hospital, o cemitério, o cotiguaçu (casa das viúvas e dos órfãos), o cabildo (espécie de sede municipal) e as oficinas. Havia espaço para todos.  Os prédios comunitários, por exemplo, tinham pátios bastante amplos em seu interior e satisfaziam aos anseios de todos. Para tornar tudo próximo de uma sociedade ideal, os jesuítas basearam seu estilo de vida nas primeiras comunidades cristãs descritas nos Atos dos Apóstolos em que não havia pessoas necessitadas. Pois os fiéis davam apoio espiritual e material uns aos outros. Em termos materiais, chegavam a vender seus bens e propriedades e entregar o dinheiro arrecadado aos apóstolos para suprir as necessidades de todos os cristãos. E nas reduções da América do Sul, todo o lucro provindo do comércio, da agricultura, sobretudo da erva-mate, do gado, dos instrumentos e esculturas, de tudo, enfim, era dividido igualmente entre todos…  Tanto o lucro vindo do comércio local quanto das exportações para a Europa.

Pode ser difícil de acreditar, mas essa sociedade existiu, de fato, em terras brasileiras, no Paraná e no Rio Grande do Sul, onde se destacaram os Sete Povos das Missões (RS). As reduções localizadas entre o Paraguai e a Argentina em conjunto com as do Brasil formavam os Trinta Povos Guaranis. Eram dezenas de jesuítas espanhóis que organizavam tais comunidades compostas de mais de cem mil índios guaranis. Alguns historiadores citam 130 mil, outros chegam a falar em 150 mil, mas o que importa é que o número de espanhóis era mínimo ante o de indígenas e, mesmo assim, estes desejavam continuar sob a regência dos primeiros. Apenas sob a regência, pois na prática, viviam todos em condições semelhantes, sem divisões de classe social. O respeito mútuo entre os habitantes faziam, inclusive, que tribos inteiras se integrassem às reduções de livre e espontânea vontade. E essa civilização pacífica e harmônica durou cerca de 150 anos entre os séculos XVII e XVIII.

Em 1750, a perseguição às reduções tomou corpo a partir dos interesses surgidos pela coroa espanhola com a troca da Colônia de Sacramento que pertencia a Portugal pelo território dos Sete Povos das Missões. Os guaranis e espanhóis teriam que se mudar para a Argentina. Os índios recusaram-se a largar tudo e os jesuítas apoiaram a decisão. Os exércitos de Espanha e Portugal destruíram as reduções, matando quem tentasse resistir. Em 1767, o rei espanhol exigiu que os jesuítas fossem expulsos. Deste modo, todo o projeto das missões foi extinto para a alegria de seus numerosos detratores. Os guaranis sobreviventes mudaram-se da região, e hoje os seus descendentes encontram-se na pobreza, muitos na miséria. As reduções transformaram-se em ruínas. Final triste para uma sociedade que vivia em paz e feliz.

No entanto, enche-me de emoção e contentamento saber que é possível o ser humano viver em fraternidade, com dignidade e sem discriminação. O impensável para muitos foi um dia realidade concreta na América Latina. Já existiu uma civilização que desconhecia a pobreza e repartia seus ganhos igualmente para o bem da comunidade como um todo. Foi, sem dúvida, a Utopia Católica das Américas. Uma utopia viva, que atravessava fronteiras unindo pessoas de origens, cores e culturas diferentes. Uma utopia que deu certo enquanto pôde. E se ela não pode mais ser recriada, que ao menos não seja esquecida. Uma utopia muito além daquela idealizada pelo escritor inglês Thomas More, criador do termo consagrado. Uma utopia apaixonante. A nossa Utopia.

Fontes Consultadas:

BARROS, Willians. A Grande Utopia. Revista Viagem Turismo. Edição de Junho de 2003. Págs. 82-89. Editora Abril. São Paulo/SP

MIRACA, Martín. As Reduções Jesuíticas do Paraguai. Revista Arautos do Evangelho. Págs. 49-51. Edição de Maio de 2011. Associação Arautos do Evangelho. São Paulo/SP.

OLIVEIRA. Josilene Aparecida de. Redução Jesuítica. Cidades Espanholas e Reduções Jesuíticas da Província do Guairá – 1554-1632.Site da Prefeitura Municipal de Santo Inácio- PR: www.prefsantoinacio.com.br

Site Wikipédia: pt.wikipedia.org/wiki/Missões_jesuíticas_na_América

Site Oficial da Jornada Mundial da Juventude – Madrid 2011: http://www.madrid11.com/pt/cultura/1397-misiones-jesuiticas


Comentários

Participe! Deixe seu comentário