Após assistir à peça “Nise da Silveira: Senhora das Imagens”, saí do teatro com a impressão que tinha prestigiado uma justa homenagem a essa que foi uma das mais inovadoras psiquiatras da história do Brasil. A peça foi instigante, questionadora, não-linear e multi-mídia, com direito à gravação de voz do ator Carlos Vereza, como a voz do inconsciente, e imagens em vídeos com depoimentos de personalidades como o poeta Ferreira Gullar e até da própria Drª. Nise. Tudo isto entremeando o monólogo da atriz Mariana Terra que interpretou com emoção a psiquiatra e narrou sua história. Se o espetáculo foi muito bom, melhor ainda foi poder relembrar a trajetória dessa revolucionária profissional da psiquiatria por tratar os considerados loucos como pessoas dignas de toda a atenção, aliando uma visão humanística à prática da medicina. A determinação da Drª Nise em entender o ser humano foi tão forte que chamou a atenção até do psicanalista Jung, ex-aluno de Freud em Viena, e que divulgou o trabalho da brasileira pela Europa. Portanto, só há motivos para querermos conhecer um pouco mais sobre ela.
Nise da Silveira, nascida em Alagoas em 1905, teve uma trajetória incomum para uma mulher de sua época. Para começar, formou-se em medicina na Bahia com apenas 21 anos, sendo a única mulher em uma turma composta por 157 alunos! Em seu trabalho de conclusão da faculdade escreveu o “Ensaio sobre a Criminalidade da Mulher no Brasil”, já encarando temas polêmicos e propondo uma contribuição da medicina na área social. Com sua vinda para o Rio de Janeiro em 1927, conseguiu conhecer personalidades de destaque; uma das primeiras foi o poeta Manuel Bandeira. Nise chegou a trabalhar como voluntária do serviço médico da União Feminina do Brasil que cuidava de mulheres em situação de pobreza. Seu constante interesse por pessoas oprimidas na sociedade levou-a também a fazer amizade com marxistas, com quem aprendeu a gostar dos livros com a teoria defendida por eles. Os mesmos livros a levariam à prisão por conta de denúncias de simpatizantes do Governo Vargas quando ela já exercia a profissão de médica no serviço público. Na prisão, a Drª Nise vivenciou o confinamento, soube da prática de torturas praticadas em colegas e percebeu como alguns companheiros conseguiam, apesar da duríssima realidade, desenvolver atividades criativas ante a um cenário tão desolador. Lá conheceu, inclusive, o escritor Graciliano Ramos, que relatou sobre o convívio com a doutora em “Memórias do Cárcere”. Não há dúvidas que as experiências vividas na prisão durante um ano e meio deixariam a médica muito mais sensível à triste realidade dos internos nos hospícios brasileiros. E, talvez, até por isso contribuiria para sua carreira vir a tornar-se tão marcante…
A Drª Nise só seria readmitida no serviço público 7 anos após sair da prisão, em 1944, e foi trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional, no bairro carioca de Engenho de Dentro. Lá, não era bem-vista pelos outros colegas de profissão porque ela desprezava as teorias da psiquiatria tradicional que não se preocupava com o aspecto humano e afetivo dos pacientes. Inclusive, quando introduziram o eletrochoque no hospital para “acalmar os doentes”, Nise negou-se a apertar o botão do aparelho. Recusava-se a ver os doentes entrarem em convulsão. Por causa disso, foi enviada a um setor na época visto como um dos mais inexpressivos: a terapia ocupacional. Ironicamente, foi aí é que ela pôde impulsionar a sua carreira.
A terapia ocupacional, a partir de então, nunca mais voltaria a ser mesma. O setor ganhou novas atividades com a criação de oficinas e ateliês: bordado, costura, desenho, pintura, artes manuais em geral. E obras e mais obras de arte brotaram das mãos dos internos esquizofrênicos, daqueles que eram considerados incapazes. A atividade foi tão intensa que mereceu uma exposição no Ministério da Educação em 1947 e começou atrair a atenção de críticos de arte, como Mário Pedrosa, e até do Diretor do MASP da época que, de tão impressionado, levou os trabalhos daqueles pacientes e de outros institutos para serem expostos em, nada menos, que Paris. Quem diria? Assim, o setor de terapia ocupacional antes visto como insignificante se expandiu a ponto de ganhar espaço, inclusive, para música, dança, esporte, etc. A produção de obras foi tanta que propiciou a inauguração do Museu do Inconsciente em 1952. Então, com os bons ventos soprando, a intrépida doutora foi conhecer o Dr. Carl Jung em 1957 que, encantado com o que viu, organizou uma exposição em Zurique com a produção dos internos. Sob a influência de Jung, a psiquiatra passou a estudar mitologia para entender melhor o conteúdo das criações, como as mandalas, símbolo universal, que mostravam uma busca pelo equilíbrio daquelas mentes em estado alterado.
Como não bastassem as inúmeras inovações que só traziam melhoras ao quadro clínico dos pacientes, a Drª Nise ainda foi pioneira na introdução de cães e gatos em instituições psiquiátricas, deixando os internos mais afetuosos. Também fundou a Casa das Palmeiras em Botafogo (1956), um externato com atividades artísticas para os doentes, sendo o primeiro no gênero na América Latina, entre outras conquistas…
É preciso de muito mais linhas para falar de todas as criações geniais da Drª Nise, o que não me atrevo a fazer. Para mim, sensacional mesmo foi visitar o local onde ela trabalhou, hoje Instituto Municipal Nise da Silveira, e poder contemplar de perto as obras originais dos pacientes que com ela conviveram. Vi os trabalhos apresentados de forma caprichada, onde cada obra tinha um desenho comparativo ao lado, com um texto explicativo que comparava a criação do interno com imagens consagradas da mitologia e/ou do inconsciente coletivo. Cito dois exemplos: a pintura de um pássaro em voo vertical, sendo que a mesma figura já era retratada por antigos alquimistas europeus, e um desenho de Adelina Gomes que representava a metamorfose de uma mulher em flor, remetendo ao mito de Daphne, presente na mitologia grega. As pinturas eram todas muito expressivas e suas mensagens pareciam transcender as telas. Tudo aguçava ainda mais minha curiosidade. Foi maravilhoso também poder ler a trajetória da Drª Nise toda ilustrada com fotos ou ver que ainda há cachorros e gatos transitando livremente na imensa área do instituto ou, ainda, saber que continuam vivas as atividades dos pacientes.
O pioneirismo da Drª Nise iniciou-se no modesto bairro do Engenho de Dentro, numa época em que nem se sonhava com o Estádio Olímpico do Engenhão, ganhou espaço no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa, no mundo. A história desta psiquiatra é tão singular e inspiradora que merece cada vez mais visibilidade. O seu falecimento foi em 1999 mas, na verdade, sua história continua. Fiquei contente ao saber da repercussão positiva da peça “A Senhora das Imagens” e já li que há um projeto cinematográfico* que contará com a atriz Glória Pires no papel principal. Portanto, para que a memória nacional continue tão viva quanto as ideias da Drª Nise, que venha o filme! Esse o Brasil não pode perder…
*Obs: O projeto resultou no filme “Nise – O Coração da Loucura”, lançado em 21/04/2016 e, de fato, contou com Glória Pires no papel principal.
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