Noutro dia, peguei-me lembrando dos vários personagens que já encontrei no meu tão conhecido Jardim do Méier. Personagens que poderiam ser do meu cotidiano, mas dos quais ando meio-afastada devido ao já tão propagado corre-corre do dia a dia do carioca. O Jardim do Méier, para quem não conhece, é um dos cenários mais famosos e também atraentes do meu bairro. Ponto de referência para os visitantes que chegam ao descer da estação de trem, o Jardim pode ser facilmente avistado, tendo em sua proximidade o Corpo de Bombeiros, o Hospital Salgado Filho e a belíssima Basílica do Imaculado Coração de Maria, única em estilo neomourisco no Rio de Janeiro. E, para quem se aventura a entrar pelos portões desse jardim, inaugurado em 1916, o que não falta são novidades…
Já na entrada, podem-se encontrar os aparelhos de exercícios da chamada “Academia da Terceira Idade”, recém-criada pela Prefeitura e já bastante frequentada. Do lado oposto, situa-se a fonte que faz o deleite dos passarinhos, dos gatos e até de gente mais despojada também que, pelo menos, até pouco tempo, costumava dar ávidos mergulhos por lá. Veem-se ao redor jovens, geralmente com uniforme escolar, que também circulam ou sentam nos bancos para conversar ou trocar beijos, sejam como ficantes ou apaixonados. Na verdade, desde a revitalização da área, feita ano passado, o Jardim passou a ser muito mais movimentado e que, ironicamente, tem sido o período que de lá tenho estado mais ausente.
Agora, passeio um pouco pela memória (e não pelo jardim) e me recordo das inúmeras vezes em que entrei naquele cenário único no Méier para alimentar meus queridos amigos felinos. Recordo-me ainda das pessoas com quem lá me deparei. Já assisti a cenas engraçadas e outras comoventes. E um misto das duas.
Certa vez, presenciei um ato heroico dos bombeiros que foram chamados para o resgate de um filhote de gato que subiu até o alto galho de uma árvore e miava em desespero por não conseguir descer. E os bombeiros não se furtaram à tarefa. Um deles subiu, resgatou o bichinho e foi aplaudidíssimo ao descer. Os bombeiros foram parabenizados e o gatinho em gratidão foi acompanhando o protagonista do salvamento para não perdê-lo de vista… E a cena emocionou muita gente. Naquele dia foi mais que uma alegria estar com um saquinho de Whiskas e alimentar os membros da família do resgatado.
Em quase todas as ocasiões, era comum que eu encontrasse pedintes por ali e várias vezes fui abordada com pedidos para que eu lhes desse algum trocado. Entretanto, uma vez vi uma cena que, de tão contundente, se tornou inesquecível para mim. Quase junto ao portão principal, estava uma moradora de rua que eu via com frequência nos arredores da minha igreja, mas que naquela ocasião nada pedia. Humildemente, ela dividia seu sanduíche com uma gata pretinha que morava no jardim. Como poderia aquela senhora negra, tão velhinha, sem nada de posses na vida, repartir o seu pouco alimento com um animalzinho desgarrado? Aquilo me comoveu de tal forma que não me contive e fui falar com ela. Disse que ficasse com o sanduíche, pois eu já tinha ração comigo. E dei-lhe também uma ajuda como talvez nunca tenha dado com tamanho contentamento. Eu a ajudei muitas vezes depois e agora não a vejo mais. Andará pelas ruas do Méier compartilhando o seu pão?
Em outro episódio, um senhor de cabelos brancos que jogava cartas numa pracinha do jardim aproximou-se para falar comigo. Cheguei até pensar que fosse uma cantada… E ele alegremente foi me falando sobre o Teatro de Marionetes que ali tinha sido reinaugurado, e que ele trabalhara há muitos anos atrás como ator em Portugal. Por essa, eu não esperava. E ele foi se lembrando daqueles tempos, da sua vinda para o Brasil e de como sua vida mudara. Falou-me de um filho e a nora que morreram de AIDS. Falou-me ainda de uma filha que era casada e que raramente via. Não me lembro se tinha mais filhos, mas lembro-me que ele me passou a impressão, mesmo com ar alegre, que sofria de muita solidão. Depois, voltou para os colegas do jogo. E pensei, por que afinal me escolhera para falar de si mesmo com tantos detalhes? Que dor era essa que ele não poderia conter diante de uma desconhecida? Fiquei feliz por tê-lo ouvido naquele dia e não mais o vi. Como tantos outros personagens…
Uma vez, enquanto procurava por gatos para dar a ração, ouvi uma voz que vinha do lado de fora da grade e gritava bem alto: “Moça do gato! Moça do gato!” E nem me atrevi a olhar… Só poderia ser comigo. O que ele poderia querer afinal? Quando eu, enfim, me virei, vi dois jovens estudantes me levando um lindo filhote para fazer lanche também. E assim, o homem da grade se foi. O gatinho inibido começou a comer e eu me arrependi de não ter atendido àquele chamado na mesma hora. Mas, o chamado de São de Francisco de Assis em relação aos meus amados bichinhos, procuro não esquecer.
E nessas idas e vindas ao jardim, já parei para olhar todo o cenário e contemplar aquele oásis do verde no Méier que conheço desde a minha infância. Lembro-me do antigo lambe-lambe que lá ficou por muitos anos e provavelmente não resistiu à era da câmera digital. Lembro-me do antigo e do atual jardim, das inúmeras árvores, dos bancos de praça e da variedade de pássaros como pombos, lavadeiras, pardais e até bem-te-vis. Lembro-me do coreto quase centenário, que é um dos três únicos no gênero aqui no Rio e do Teatro Municipal de Guignol, o tal das marionetes… Lembro-me também das várias pessoas como se cada uma estivesse ali representando um diferente papel. É o meu vizinho que vai com prazer plantar árvores e regar a grama. É algum senhor que se deita num banco para cochilar (?) ao sol. São famílias que levam suas crianças para brincar no parquinho, idosos que vão ao jardim para descansar e outros para exercitar-se, moradores de rua que andam por ali, homens que se reúnem por causa do baralho… São os casais que param para namorar, os evangélicos que se unem para orar e as pessoas que amam os animais e vão diariamente alimentá-los. E assim, também eu, que saio à procura dos gatos.
Em tempos em que os bichanos se tornam cada vez menos numerosos devido à adoção por parte de fãs, entre outros, e à prática das castrações, fico nostálgica com a lembrança desses outros tipos de personagem, os inúmeros felinos de todas as cores que se deitavam e corriam pelas alamedas, subiam nas árvores e recebiam carinho dos frequentadores. Os mesmos gatos que alegravam a paisagem deitados na grama, aos pés da estátua da “deusa” Atena, e nos bancos do jardim. Gatos que ficavam rondando os bustos do Barão do Rio Branco, do Dr. Arisitides Caire, o médico dos pobres, ou simplesmente desfrutando do verde local. Gatos que também animavam as crianças e faziam a festa dos elurófilos.
Querem saber de uma coisa? Jogo a nostalgia de lado. Vou verificar a quantidade da ração em casa, preparar a sacola para o próximo dia, recolher as minhas lembranças para as letras no Word do meu computador e animar-me com os próximos momentos em que verei os bichinhos correndo atrás de mim. Quero poder vê-los abocanhar umas boas porções da “Golden”, miar com vontade e comer com alegria. Mais uma vez, lá se vai a moça do gato….
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